quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

FONAJE: Lócus de interpretação dos Juizados Especiais Estaduais

Paulo Zacarias da SilvaJuiz Juiz Presidente do FONAJE e da Associação Alagoana de Magistrados

Desde a Constituição de 1946 que o Brasil inovou ao consagrar o princípio de que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”(art. 5º, XXXV, CF/88). Esse dispositivo constitucional, de índole processual, é conhecido como direito de ação, direito de acesso à justiça, também chamado por muitos processualistas de princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional.
O objetivo desse direito de ação é justamente difundir a idéia de que todo homem, independentemente de raça, credo, condição econômica, posição política ou social, tem o direito de ser ouvido por um tribunal independente e imparcial, instituído por lei, para a defesa de seu patrimônio e de sua liberdade, ou sobre o fundamento de qualquer acusação em matéria penal dirigida contra ele.
Esse direito tem sido espraiado não apenas em dispositivos constitucionais, mas também em pactos e convenções internacionais. Veja-se, a propósito, o que dispõem a esse respeito à Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, proclamada pela ONU (10.12.1948, art. 10), a Convenção Européia para a Salvaguarda dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais ( Roma, 04.11.1950, art. 6º,I), o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (16.12.9166, art. 14) e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, assinada em San José, Costa Rica(22.11.1969, art. 8, I).
O conteúdo desse princípio consiste, exatamente, em colocar à disposição de todos os brasileiros e estrangeiros residentes no Pais o direito público subjetivo de ação, que é genérico, abstrato e incondicional, sem distinções e retaliações de qualquer espécie.
Malgrado conste esse direito em tão valiosos documentos, a realidade é que o Estado, ao longo do tempo, não se preocupou em colocar à disposição de todos os instrumentais necessários para o exercício pleno desse direito fundamental. Sabidamente, somente os bem mais aquinhoados é que podiam e tinham acesso pleno à jurisdição. Os economicamente debilitados não podiam exercer seus direitos em toda plenitude, por um conjunto de fatores, entre os principais a dificuldade econômica, o formalismo jurídico e a morosidade processual. Havia, assim, um ordenamento jurídico que se fundamentava na dignidade da pessoa humana mais que tratava igualmente os desiguais.
Era necessário, portanto, que o Estado, que atraiu para si o monopólio da justiça, criasse órgãos e procedimentos jurisdicionais diferenciados para permitir o acesso dos economicamente menos favorecidos à justiça, sob pena de deixá-los à margem da legalidade e entregues às relações de força, o que certamente conduziria a uma perigosa desestabilização social.
Foi por isso que surgiu, na década de 80, em nosso País, a Lei n° 7.244/84, conhecida como lei das pequenas causas, exatamente para atender às demandas do cidadão comum, combatendo o clima de impunidade e de insegurança que se instalou na república brasileira.
Quando foram criados os Juizados de Pequenas Causas, o jurista Theotonio Negrão captou o espírito desses juizados e lecionou: “Para que o povo tenha confiança no Direito e na Justiça, é preciso que esta seja onipresente; que as pequenas violações de direito, tanto quanto as grandes, possam ser reparadas” (Juizado Especial de Pequenas Causas – Lei 7.244/84 – RT Legislação, nota preliminar).
Pois bem.
Pelo menos em nível de legislação infraconstitucional, aparentemente os pobres tinham sido atendidos.
Acontece que a lei n° 7.244/84 se mostrou insuficiente para atender aos reclamos dos menos favorecidos, por razões as mais variadas, que, devido ao objetivo destas reflexões, não podemos agora analisá-las.
O certo é sobreveio uma nova ordem constitucional brasileira em 1988 e o nosso constituinte, ouvido os clamores das ruas, inseriu o disposto no art. 98, inciso I, no capítulo III, da CF, ordenando que os Estados criassem os Juizados especiais, providos por juízes togados e leigos, competentes para conciliação, o julgamento e a execução de causas cíveis de menor complexidade e infrações penais de menor potencial ofensivo, mediante os procedimentos oral e sumaríssimo, permitidos, nos hipóteses previstas em lei, a transação e o julgamento de recursos por turmas de juízes de primeiro grau.
Não imaginou o constituinte que estivesse, com o aludido dispositivo, provocado uma tremenda e benéfica revolução em prol dos jurisdicionados brasileiros, bem como para o estudo da ciência processual.
Muito embora o legislador ordinário tenha cumprindo sua obrigação com sete anos de atraso, em 26 de setembro de 1995 editou a Lei nº 9.099, instituindo os Juizados Especiais Cíveis e Criminais no âmbito Estadual. Depois, diante do comprovado e decantado sucesso dos Juizados Estaduais, sobreveio a Lei nº 10.259/01, que instituiu os Juizados Federais. Essas duas leis formam, na verdade, o “Estatuto dos Juizados Especiais”, na feliz expressão do jurista carioca Alexandre Freitas Câmara. Do ponto de vista do direito processual civil elas compõem, reunidas, um importante microssistema processual distinto, portanto, do sistema criado pelo Código de Processo Civil, ainda que supletivamente tenha que a ele recorrer, em algumas hipóteses.
Passados dez anos da edição da lei n° 9.099/95, podemos afirmar, com segurança, que a verdadeira reforma do Poder Judiciário ocorreu com a criação dos Juizados Especiais, vez que, sob o ponto de vista dos benefícios direcionados aos jurisdicionados, especialmente aqueles que viviam a margem da prestação dos serviços do Poder Judiciário, efetivamente o acesso à justiça é uma realidade concreta, apesar de alguns percalços de ordem estrutural e de mentalidade. Basta ver as estatísticas dos Tribunais brasileiros, tanto Estaduais como Federais, onde, em média, mais de 40% das demandas judiciais transitam nos Juizados Especiais, orientando-se pelos “critérios da oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade”.
Assim que vieram a lume, especialmente à primeira lei, várias perplexidades surgiram entre os intérpretes do direito processual brasileiro. Para dirimir as primeiras controvérsias, já em dezembro de 1995, foi criada uma comissão de notáveis processualistas, denominada de “Comissão Nacional de Interpretação da Lei nº 9.099/95”, sob a Coordenação da Escola Nacional da Magistratura, composta dos seguintes juristas: Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira; Min. Luiz Carlos Fontes de Alencar; Min. Ruy Rosado de Aguiar Júnior; Dês. Weber Martins Batista; Desa. Fátima Nancy Andrighi, Dês. Sidnei Agostinho Beneti, Profª. Ada Pellegrini Grinover, Prof. Rogério Lauria Tucci e o Juiz Luiz Flávio Gomes. Essa comissão reuniu-se uma única vez e produziu quatorze “conclusões”, abrangendo aspectos cíveis e criminais da Lei nº 9.099/95.
Só que as dúvidas e as divergências interpretativas continuaram espalhadas pelos operadores do microssistema em todo território nacional. Com a instalação dos juizados em praticamente todos os Estados da Federação, os Tribunais Estaduais instituíram a figura do “Juiz Coordenador”, que passou a ser receptáculo de todas as dúvidas e reclamações dos juizes estaduais que operavam no microssistema. Porém, a experiência demonstrou que cada Estado da Federação estava praticando e interpretando diferentemente os institutos criados pela Lei nº9.099/95, e, para dar um rumo seguro, trocar experiência e buscar, tanto como se fosse possível a uniformidade de procedimentos, foi organizado o I ENCONTRO NACIONAL DE COORDENADORES DE JUIZADOS ESPECIAIS, no período de 22 e 23 de maio de 1997 – Natal/RN. Desse encontro surgiu um Relatório Final, onde, entre outros pontos importantes, decidiu-se “1. Criar o Fórum Permanentes de Coordenadores de Juizados Especiais do Brasil, com o objetivo de manter intercâmbio constante para aperfeiçoamento da prestação jurisdicional dos Juizados Especiais”. Para presidir esse Fórum foi indicado o Dr. João Cabral da Silva, Juiz de Direito do Rio Grande do Norte, para exercer as funções de Coordenador do Fórum até a realização do próximo encontro.
Foi deliberado que os Coordenadores se reuniriam duas vezes por ano, em capitais diferentes, a fim de dar continuidade aos estudos da Lei, a troca de experiências e que se buscasse a desejada uniformidade de procedimentos.
Para tanto, foram realizados os seguintes Encontros: II Encontro em dezembro/97-Cuiabá (MT), III Encontro em maio/98-Curitiba (Pr), IV Encontro/novembro/98 no Rio de Janeiro(RJ), V Encontro em maio/99 em Salvador(BA), VI Encontro novembro/99 em Macapá(AP), VII Encontro em maio/2000 em Vila Velha(ES), VIII Encontro em novembro de 2000 em São Paulo (SP), IX Encontro em junho/2001 em Belo Horizonte, X Encontro em novembro 2001, em Rondônia(RR), XI Encontro em maio/2002 em Brasília(DF), XII Encontro em novembro de 2002 em Maceió, XIII Encontro em junho/2003, em Campo Grande, XIV Encontro em novembro de 2003, em São Luiz(MA), XV Encontro em maio de 2004, em Florianópolis(SC), XVI Encontro em novembro de 2004, no Rio de Janeiro(RJ), XVII Encontro em maio de 2005, em Curitiba (PR), XVIII em novembro de 2005, em Goiânia (GO), XIX Encontro em maio/2006, em Aracaju (SE).
A partir do Encontro de São Paulo, em novembro de 2000, o “Encontro de Coordenadores dos Juizados Especiais” passou a se denominar de “Fórum Nacional dos Juizados Especiais”, com a convocação de todos os magistrados que atuam no sistema dos Juizados Especiais e não apenas os Coordenadores.
Daí surgiu o FONAJE.
Já ocorreram, portanto, 19(dezenove) Encontros, o último foi em Aracaju,no período de 31 de maio a 02 de junho de 2006. O próximo está marcado para o mês de novembro deste ano, na cidade de Vitória, ES. Além do primeiro presidente João Cabral, grandes juízes já passaram pela Presidência do Fonaje, como o juiz paulista Ricardo Cunha Chimenti, a juíza Sueli Perreira Pini, do Amapá, a juíza Sandra Silvestre, da Rondônia, Denise Gruger Pereira, do Paraná e atualmente o Fórum e presidido pelo escriba destas notas.
O Fonaje já produziu, ao longo de seus dezenove encontros 96 Enunciados Cíveis e 77 Enunciados Criminais, além de inúmeras recomendações aos TJs, muitas delas acatadas. Esses enunciados retratam o pensamento dos juizes que atuam no microssistema e servem de diretriz na aplicação da Lei nos casos concretos, sendo muitos deles acolhidos pelos Tribunais Superiores e comentados pelos processualistas. O enunciados criminais, por exemplo, foram comentados pelo jurista Luiz Flávio Gomes, da Editora Revista dos Tribunais. Já os enunciados cíveis foram comentados pelo Juiz Erich Linhares, de Rondônia, da Editora Juruá, em 2005.
O Conselho Nacional de Justiça, órgão criado por força da Emenda Constitucional n° 45, instituiu uma Comissão de Juizados Especiais, composta atualmente pelos Conselheiros Germana Moraes e Eduardo Lourenzoni, cuja comissão tem sido uma grande aliada do Fonaje, pois constantemente o Fonaje é convidado para participar de encontros e seminários organizados pelo CNJ, tendo, inclusive, no ano de 2005 elaborado em conjunto o diagnóstico qualitativo e quantitativo dos Juizados Especiais. Com a participação ativa do Fonaje, o CNJ chegou a estabelecer a visão e a missão dos Juizados Especiais, nos seguintes termos: Visão: “Ser um instrumento de pacificação social capaz de provocar a mudança de comportamento da sociedade, de forma a estimular o cumprimento voluntário das próprias obrigações e o respeito ao direito do próximo, contribuindo para a recuperação da imagem do Poder Judiciário e para o resgate da cidadania”. Missão:
“Garantir o amplo acesso, a celeridade e a efetividade da prestação jurisdicional nas causas de competência dos Juizados Especiais com simplicidade e informalidade”.
Também o Fonaje é responsável pelo aprimoramento legislativo no âmbito do microssistema processual. Vários projetos de lei encontram-se em tramitação no Congresso Nacional e o Fonaje tem sido convocado para discutir e oferecer sugestões. Tem impedido, também, que o projeto de lei nocivo ao aperfeiçoamento do acesso à Justiça seja aprovado, como ocorreu, por exemplo, com um Projeto de lei do Senador Pedro Sinom, que limitava o acesso ao Juizado Especial somente nas causas que não ultrapassassem R$ 4.800,00(quatro mil e oitocentos reais).
Por esses motivos, o Fonaje continua sendo o lócus interpretativo dos juízes brasileiros que atuam no microssistema processual, uma vez que a lei pode ser mais sábia do que o legislador e há necessidade de se buscar permanentemente a interpretação, que tem por objeto determinar o sentido e o alcance das expressões do Direito, segundo o escólio de Carlos Maxumiliano.

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