Uma
acusação falsa causa muita dor de cabeça... Mas enfrentar um processo por causa
disso é ainda mais grave e, nesses casos, o denunciante comete o crime
conhecido como “denunciação caluniosa”. O delito é tipificado no artigo 339 do
Código Penal (CP) e, apesar do impacto negativo contra os indivíduos, é
considerado um crime contra a administração pública e a Justiça. Ele pode
ocorrer em investigações policiais e administrativas, em processos judiciais,
em inquéritos civis e em ações de improbidade administrativa.
Definição legal
O Habeas Corpus
(HC) 25.593, relatado pelo ministro Jorge Scartezini, agora aposentado, definiu
que a acusação falsa na denunciação caluniosa deve ser objetiva e
subjetivamente falsa. Ou seja, contrária à verdade dos fatos e com a certeza,
por parte do acusador, acerca da inocência da pessoa à qual se atribui o crime.
O dolo, a intenção criminosa, é a vontade de que seja iniciada uma investigação
policial ou um processo contra a vítima. Um simples pedido de apuração de
irregularidades, sem a descrição de fatos definidos como crime, não seria o
bastante para caracterizá-la, conforme entendimento do ministro Napoleão Nunes
Maia Filho no HC 58.961.
O delegado de Polícia Civil e professor de direito penal e processo penal da
Fadivale, Jeferson Botelho Pereira, destaca que a jurisprudência do STJ é no
sentido de que a caracterização do crime depende de prévio conhecimento da
inocência do acusado. Para o professor, o combate a esse delito deve ser
severo. “Ninguém pode acionar a máquina judiciária para distribuir injustiças e
semear discórdias, levando em conta que o agente passivo da ação penal é
inocente”, observou.
A denunciação é um crime distinto da simples calúnia e exige três elementos
para ser configurada. O ministro Jorge Mussi explica, em seu voto no HC
150.190, que o primeiro elemento é a individualização da pessoa acusada e o
segundo é a definição dos delitos falsamente imputados. O terceiro fator, e o
mais importante, é que o denunciante tenha a ciência prévia da inocência do
denunciado.
Naquele caso, a denúncia foi feita contra uma promotora pública do Rio de
Janeiro e as falsas acusações eram de prevaricação e supressão de autos de
processos. O ministro Mussi destacou que, para o delito da denunciação, não é
sequer necessário que o ato se revista de formalidade, bastando que haja
provocação oral da autoridade e o começo do inquérito. O ministro relator
rejeitou também o argumento da defesa de que haveria litispendência com uma
ação penal anterior, na qual a ré foi condenada por calúnia.
Calúnia e denunciação
O ministro entendeu que houve dois delitos diferentes. No primeiro, a ré
caluniou a promotora ao atribuir-lhe falsos delitos, sendo iniciada uma
investigação administrativa que foi arquivada. Posteriormente, a denunciante
encaminhou várias mensagens eletrônicas à Ouvidoria Geral do Ministério
Público, à Corregedoria da Justiça e à Corregedoria da Polícia Militar do Rio
do Janeiro e até a jornalistas, repetindo as acusações.
Dessa vez, chegou a ser iniciado procedimento administrativo contra a vítima.
Para o ministro Mussi, mesmo as acusações sendo as mesmas, não houve
litispendência, pois elas ocorreram em momentos diversos, foram dirigidas a
autoridades diferentes e no segundo caso houve efetiva instauração de procedimento.
A diferença entre a calúnia e a denunciação foi um dos pontos mais importantes
no julgamento do HC 195.955, relatado pelo ministro Napoleão Nunes Maia Filho.
O réu no processo é um promotor de Justiça do Rio Grande do Sul que acusou
advogado de falsidade ideológica e de defender os maiores traficantes do
estado.
Houve uma ação penal contra o promotor. Nas suas alegações ao STJ, o promotor
afirmou que o advogado não comprovou que ele saberia da falsidade das
acusações. Também alegou que, caso ele fosse acusado, outra promotora pública
presente no mesmo julgamento deveria ser apontada como coautora, já que ela
apresentou, posteriormente, notícia-crime com a mesma acusação (falsidade
ideológica) contra o advogado.
Entretanto,
o ministro Napoleão Nunes Maia Filho negou o pedido de habeas corpus por
entender que a suposta ignorância sobre a falsidade das acusações não estaria
clara nos autos e que o habeas corpus não seria a via legal adequada para tais
questionamentos. Já na questão de coautoria, o ministro observou que a simples
apresentação da notícia-crime não a caracterizaria. Além disso, a tipificação
das condutas não era a mesma.
No caso do promotor seria uma simples calúnia (artigo 138 do CP), mas a outra
promotora cometeria a denunciação caluniosa se um processo fosse iniciado. O
primeiro, destacou o ministro, é uma ação penal privada, ou seja, o atingido é
responsável por iniciá-la. Já a ação penal por denunciação é pública
incondicionada, pois o bem atingido é a própria administração da Justiça. “Não
bastaria, ainda, simples ofensa; deve-se com tal notícia-crime dar ensejo à
abertura de investigação ou processo”, concluiu.
Inocência do acusado
Saber da
inocência do acusado antes da denúncia é a condição indispensável para a
denunciação caluniosa e, se isso não é claro nos autos, não é possível
tipificar o delito. Essa linha foi seguida pelo ministro Nilson Naves, agora
aposentado, no Recurso em Habeas Corpus (RHC) 16.229.
A ré acusou um homem pelo crime de ameaça, previsto no artigo 147 do CP. No
curso do processo, entretanto, o Juizado Especial Criminal de Teófilo Otoni
(MG) ponderou que os depoimentos seriam contraditórios e que a principal
testemunha não foi encontrada. Determinou que fosse investigada a acusação de
denunciação caluniosa contra a ré.
No seu voto, o ministro Nilson Naves considerou que o acusado de ameaça foi
absolvido pelo juizado especial por não haver prova suficiente contra ele. O
órgão julgador não teria negado o fato e afastado a autoria, apenas considerou
não ter provas o bastante. “A sentença que pronuncia o in dubio pro reo
[na dúvida, em favor do réu], por si só, não há de servir de base à denúncia
pelo crime do artigo 339 do CP”, asseverou o ministro. Para o magistrado,
seriam necessários outros elementos para a ação penal, razão pela qual
considerou a denúncia inepta.
Vingança
A vingança é a motivação primordial para a maioria dos casos de denunciação
caluniosa. Um exemplo é o RHC 22.101, da relatoria do ministro Og Fernandes. No
caso, dois servidores do Fórum de Conselheiro Pena (MG) induziram duas mulheres
semianalfabetas a assinar queixas contra uma juíza e três outros servidores da
secretaria judicial da comarca. Uma das mulheres não sabia sequer assinar o
próprio nome e usou impressão digital para autenticar a queixa.
As vítimas foram acusadas de prestar mau atendimento ao público e dar
preferência aos mais ricos, tudo isso com apoio da juíza. Não havia nenhuma
outra queixa ou procedimentos anteriores contra elas. No recurso ao STJ, os
réus afirmaram que não havia prova de que eles induziram as pessoas a assinar,
que mal as conheciam e que não haviam assinado nenhum documento ou queixa
contra as vítimas.
No seu voto, entretanto, o ministro Og Fernandes afirmou que o recurso em
habeas corpus só poderia ser provido se não houvesse nos autos indício da
autoria ou da existência do delito. Mas os autos traziam depoimentos das
queixantes afirmando que foram induzidas pelos réus com promessas de ver
facilitados processos nos quais elas tinham interesse. Para o ministro relator,
de acordo com o artigo 41 do Código de Processo Penal, haveria indícios
suficientes para a ação penal.
Outro caso de vingança foi retratado no HC 155.437, de responsabilidade do
ministro Napoleão Nunes Maia Filho. Um idoso acusou falsamente policiais
militares de agressões verbais e físicas. Ele afirmou que teria recebido socos
nos braços e abdômen, e por isso foi instaurado um inquérito policial no
Comando Regional de Polícia Ostensivo (CRPO). Todavia, uma perícia comprovou que
os ferimentos do idoso foram causados por ele mesmo.
Os autos indicaram que o réu pretendia se vingar dos policiais, pois eles o
prenderam em um crime anterior de desacato. No STJ, ele alegou que teria
direito à redução do prazo de prescrição, com base no Estatuto do Idoso (Lei
10.741/03). Também sustentou que a pena deveria ser fixada no mínimo legal.
Entretanto,
o ministro Napoleão considerou que o artigo 115 do CP só prevê a mudança no
prazo de prescrição se o réu já tiver completado 70 anos na data da sentença.
No caso, o réu teria apenas 63 anos. O ministro também entendeu que a
denunciação caluniosa ficou claramente qualificada, justificando a pena acima
do mínimo legal.
Jurisprudência
Além dos ataques às autoridades, o delegado e professor Botelho Pereira
aponta que os casos em que mais ocorrem denunciações caluniosas são as brigas e
desavenças conjugais, acusações falsas de empregador contra empregado para
evitar ações trabalhistas e credores que acusam seus devedores inadimplentes de
estelionato. “Outro caso ocorre na época das eleições, quando candidatos
imputam falsamente aos adversários a prática de crimes eleitorais”, completou.
O professor disse que o STJ firmou importante jurisprudência relacionada ao
tema ao vedar o embasamento de ações penais exclusivamente em denúncias
anônimas. Ele apontou que o artigo 229 do CP foi alterado pela Lei 10.028/00,
resolvendo a celeuma sobre se o crime se aplicaria apenas no inquérito policial
formalmente instaurado e no processo penal. O novo texto resolveu a questão
estendendo a possibilidade para outras situações, como a investigação
administrativa e o inquérito civil.
Entretanto, não ficou claro se a denunciação se aplicaria aos casos de denúncia
anônima, muitas vezes fomentadas pelo próprio agente estatal. “Ao vedar a
simples denúncia anônima para embasar a ação penal, o STJ esclareceu
grandemente a questão”, completou. O professor Botelho acredita que os
legisladores ainda devem determinar a conduta com mais clareza, para não dar
margem a interpretações judiciais divergentes.
FONTE - STJ